CARTÃO-POSTAL POLUÍDO
Lagoa da Pampulha fica 5 meses sem limpeza, e PBH não garante que Marcio Lacerda possa velejar no local
Há oito anos, ex-prefeito planejava praticar esportes náuticos no ponto turístico; após interrupção em setembro, tratamento da água voltou em março
Dias de bom vento passaram por Belo Horizonte, mas não há testemunha de que o ex-prefeito Marcio Lacerda (2009-2016) tenha velejado na lagoa da Pampulha. Na próxima sexta-feira (28 de junho), a declaração do político de que praticaria esportes náuticos na represa completa oito anos, sem que ele lançasse seu “veleiro” pelo cartão-postal. Talvez porque a água, que até chegou a ser considerada própria para esse tipo de recreação, ainda receba lixo e esgoto e, atualmente, a prefeitura não saiba como ela está classificada quanto aos critérios de qualidade. Por cinco meses, a lagoa ficou sem tratamento, e os trabalhos só foram retomados em março.
“Pretendo praticar esportes náuticos já no próximo ano na Pampulha. Quem sabe, em um dia de bom vento, eu pegue o meu veleirinho e dou uma velejada”, afirmou Lacerda em 28 de junho de 2016. Quase uma década depois e com a cidade também passando pelas gestões de Alexandre Kalil (2017-2022) e Fuad Noman (2022-atualmente), a sujeira segue a navegar pelo ponto turístico. Por dia, a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) recolhe cinco toneladas de lixo flutuante na lagoa. No período chuvoso, o volume dobra.
Em entrevista nessa terça-feira (25 de junho), Lacerda ressalta que a afirmação fazia sentido diante do trabalho da administração municipal à época. “Tínhamos os resultados dos primeiros ensaios feitos com o tratamento da água e conseguimos que a Copasa fizesse um mutirão de ligação de esgotos. Se tivesse continuado naquele ritmo, a água poderia ser enquadrada na classe 3 (que permite a navegação). Há um histórico longo de descumprimento de compromissos assumidos pela Copasa. Essa é a questão principal. Além disso, onde está a vontade política para resolver um assunto tão prioritário?”, pergunta o ex-prefeito, hoje fora da política e sem filiação partidária.
Para praticar esportes de menor contato com a água, como velejar, é preciso que a lagoa seja enquadrada na “classe 3” nos critérios do Conselho Nacional de Meio Ambiente. Em março de 2017, nove meses após a frase de Lacerda, a água atingiu esse nível. Hoje, entretanto, a qualidade dela é uma incógnita, pois, de outubro de 2023 a fevereiro deste ano, o tratamento e a análise da lagoa foram interrompidos.
Lixo acumulado próximo à orla da Pampulha, em frente à rua Raimundo Albergaria Filho, em 24 de junho de 2024
A pausa ocorreu devido ao fim do contrato da PBH com a empresa responsável pelo trabalho. Mas por que um novo vínculo só foi assinado em março? “A nova contratação demandou tempo e adequação da documentação técnica e jurídica a fim de atender à nova Lei de Licitações”, respondeu, em nota, o Executivo. Segundo a prefeitura, o novo acordo prevê a “aplicação combinada das tecnologias de remediação e biorremediação” na represa. O documento foi assinado com o Consórcio Pampulha Viva, tem duração de 1 ano e custo de R$ 22 milhões.
Conforme a administração municipal, a avaliação da água será realizada trimestralmente, e o primeiro resultado após a retomada dos trabalhos ainda aguarda análise laboratorial. A avaliação mais recente, de setembro do ano passado, enquadrou a lagoa na classe 3, mas não é possível garantir que o mesmo nível permanece hoje. “Nesse período sem o tratamento adequado, a qualidade da água caiu”, admite a PBH, “o que demonstra a importância e a eficácia do método utilizado pela prefeitura”, completa.
Bacia da Pampulha
Se fosse um município, a Bacia da Pampulha seria o quinto maior de Minas Gerais, com população estimada em 500 mil habitantes, atrás apenas de Belo Horizonte, Uberlândia, Contagem e Juiz de Fora. A área engloba as 507 nascentes (56% delas em Contagem e 44% em BH) que, após formarem córregos, deságuam no cartão-postal. A grandeza ilustra a complexidade do problema. Um dos principais é o despejo de esgoto na lagoa.
“Reviva Pampulha”
Após a PBH ir à Justiça para a Copasa solucionar a questão, a companhia iniciou, em março de 2023, o projeto “Reviva Pampulha”, com obras para conectar à rede de esgoto 9.759 imóveis da bacia, sendo 2.721 na capital e 7.038 em Contagem. No balanço mais recente, divulgado pela empresa em abril, 35,6% dessas ligações haviam sido feitas: 3.476. A previsão é que as obras terminem em 2028. “Temos feito todo o esforço para antecipar ao máximo esse prazo”, ressalta o gestor de Empreendimento de Grande Porte da Copasa, Sérgio Neves Pacheco.
Antes disso, a estatal tenta superar um obstáculo: lidar com moradores que querem impedir as intervenções em suas casas. “O desafio é convencer a população a ligar o imóvel à rede de esgoto e convencer o vizinho a deixar passar a rede [em seu lote]. Quando não temos sucesso nessa situação, a Vigilância Sanitária atua de forma coercitiva. Há casos, por exemplo, em que o morador tem uma fossa e, por não querer pagar uma tarifa, recusa a ligação com a rede de esgoto”, explica Pacheco. Até março, a Vigilância Sanitária já havia atuado em 483 residências, sendo 313 em BH e 170 em Contagem.
Pacheco também aponta ações complementares da Copasa no “Reviva Pampulha”, como a Estação de Tratamento de Águas Fluviais (Etaf), no Parque Ecológico, que funciona como um filtro para resíduos dos córregos Ressaca e Sarandi. Juntos, segundo a companhia, eles representam 70% do volume de água que chega à lagoa. “Além disso, implantaremos estações de monitoramento em tempo real nos principais afluentes e faremos ações de ‘caça-esgoto’ e filmagem das nossas redes para identificar algum lançamento irregular.”
Trator da PBH atua na limpeza de canal após a Etaf, próximo ao Parque Ecológico, em 24 de junho de 2024
O caminho do lixo
No percurso entre as nascentes e a lagoa, os afluentes da Bacia da Pampulha ficam à mercê do bom ou do mau comportamento dos cidadãos. Tudo o que ocorre nesse caminho reflete na qualidade da água do cartão-postal de BH. E nem precisa se esforçar para notar que, de entulho de obra a absorvente usado, todo tipo de lixo é descartado em alguns desses córregos, como o Muniz, entre os bairros Carajás e Pedra Azul, em Contagem.
A 50m de um trecho crítico do Muniz está o Ecoponto Carajás, espaço da prefeitura exclusivo para descarte de materiais que não devem ser dispensados no lixo residencial, como móveis, madeira e restos de construção. O equipamento fica em uma das margens do córrego, mas a impressão é de que nem todos descobriram sua entrada, na rua Pedro Álvares Cabral. Basta se aproximar do curso d’água para notar que garrafas pet, caixas de achocolatado, pneus, pedaços de espuma e até um sofá tentam colonizar o Muniz.
Lixo abundante no córrego Muniz, em Contagem, em 24 de junho de 2024
E já foi pior, segundo moradores, que, temendo represálias, preferem não se identificar. “Se eu chamar a atenção das pessoas, é perigoso ter até que mudar daqui. Temos que ficar ‘na miúda’, mas direto moradores jogam lixo, de todo tipo. Até melhorou, depois que colocaram uma cerca, porque antes vinham caminhões e atiravam entulho. Um córrego desse era para ser limpo. Uma água como essa acaba com a Pampulha”, critica um deles. “Desde que me lembro, aqui é assim, há mais de 20 anos. Antes era pior, mas agora, que cercaram, melhorou. Quem joga lixo é morador mesmo”, relata outro morador.
Contagem faz limpeza no período chuvoso
A Prefeitura de Contagem admite só limpar os córregos da cidade antes do período chuvoso (iniciado em outubro) ou em casos específicos. “A limpeza é realizada anualmente, antes da época de chuva, e quando há uma ocorrência específica, como, por exemplo, quando vai entulho de obra para a beira do córrego ou quando alguém denuncia lançamento [de lixo]. Não há uma periodicidade, mesmo porque isso ocorre em um lugar ou outro. A limpeza é feita quando há denúncia ou alguém da própria prefeitura percebe a necessidade, porque a área é muito grande, tem muito córrego. Esse é um problema que temos, toda cidade tem”, afirma o assessor de gabinete da Prefeitura de Contagem, Isnard Horta.
Ele explica que as denúncias podem ser feitas pelo site da prefeitura, no ícone e-fisc, na primeira página, e pelo telefone da Limpeza Urbana: 7313-0018. Horta destaca que há outras ações da administração municipal para reduzir a poluição da Pampulha. “Há a fiscalização de terraplanagens, que é um risco para assoreamento de córregos, e está em planejamento um trabalho conjunto com a Copasa de fiscalização da rede de esgoto de empresas.”
O TEMPO também notou o descarte de lixo à beira dos córregos Ressaca e Sarandi já em Belo Horizonte, próximo à chegada deles à lagoa. Segundo a PBH, todos os trechos de córregos são limpos, em média, três vezes por ano. “Na Regional Pampulha, no total, são 18 córregos e nove nascentes públicas. A limpeza consiste em capina e roçada nas margens e a retirada de resíduos das margens e cursos d’água.”
Lixo no leito do córrego Sarandi, na avenida Clóvis Salgado, já em BH, em 24 de junho de 2024
Situação dos córregos
A Copasa monitora a qualidade da água de 21 córregos que deságuam na Pampulha. Na análise mais recente, realizada em março, 11 foram classificados como “bons”, oito como “aceitáveis” e dois como “ruins”. Em relação ao resultado anterior, de dezembro do ano passado, houve piora na classificação de cinco, com destaque para o Muniz e o São João, que passaram de “aceitável” para “ruim”. O único que evoluiu de “aceitável” para “bom” foi o Bom Jesus. “Como as análises ocorreram no trimestre chuvoso, esses resultados já eram esperados, em função do carreamento da poluição difusa pelos cursos de água da bacia”, diz a companhia.
Falar em nadar é ‘demagogia’
Quem não nadou na Pampulha provavelmente nunca nadará. Diante da complexidade do problema de poluição na lagoa, a Prefeitura de Contagem classifica como “demagogia” falar na possibilidade de banho no local um dia. E isso também não está no horizonte da Prefeitura de BH, cuja meta é deixar a água própria para a “contemplação paisagística”, ou seja, para ser admirada, sem entrar em contato com ela.
“Os objetivos continuam sendo a reversão do controle da eutrofização, com a eliminação dos maus odores, da mortandade de peixes e da proliferação excessiva de algas, para garantir o uso de contemplação paisagística do espelho d’água”, diz a PBH. “Para garantir esses objetivos, são considerados como referência os padrões de qualidade definidos para a classe 3”, completa a administração municipal, que espera atingir esse parâmetro nesta primeira análise após a retomada da limpeza. Para nadar, é preciso que a água esteja enquadrada na classe 2.
“Esse papo de velejar e esquiar na Pampulha é lorota, é mentira. A limpeza será constante e eterna”, alertou o então prefeito de BH, Alexandre Kalil, em 5 de setembro de 2018. A declaração vai ao encontro do que diz o assessor de gabinete da Prefeitura de Contagem, Isnard Horta. “A possibilidade de nadar num lago urbano é algo muito difícil. É melhor que consideremos uma melhoria permanente do que dar um prazo para nado e pesca, como foi feito há um tempo. Isso é um tanto demagógico. Dar prazo para nadar, por exemplo, não é positivo para um processo complexo como esse”, avaliou Horta, ressaltando que o “Reviva Pampulha” é o “primeiro plano mais sistemático” para tratar a lagoa.
Análise de especialista em engenharia sanitária
A projeção pouco animadora para quem imagina se divertir um dia na água da Pampulha também é apontada por Marcelo Libânio, professor titular do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O especialista considera pequena a chance de reviver o dia em que, ao lado do pai, na década de 1960, deu braçadas no cartão-postal. “Pode acontecer? Pode, mas acho muito difícil que eu volte a poder nadar na Pampulha, inclusive daqui a décadas”, lamenta.
Aves dividem espaço com lixo na lagoa da Pampulha, em frente à rua Raimundo Albergaria Filho, em 24 de junho de 2024
“A poluição de lagos urbanos em países em desenvolvimento é uma questão complicada, porque muito dela vem de águas fluviais (de rios e córregos), e a bacia da Pampulha é grande. O que ocorre nos córregos Sarandi e Ressaca, por exemplo, interfere na água da lagoa. É preciso deter o lançamento de resíduos sólidos nos córregos para que eles não cheguem a ela. E como fazer isso, a não ser melhorando a qualidade de vida da população que mora às margens desses córregos?”, questiona Libânio.
Ela aponta problemas socioeconômicos e culturais como barreiras a serem superadas. “Será que a coleta de lixo nesses locais é adequada? Será que essas pessoas foram educadas para saber que o lixo tem que ser acondicionado, e não lançado no rio? Será que elas tiveram chance de ter essa informação? Passa por uma questão de educação ambiental. Essas pessoas não são piores do que ninguém. Elas não tiveram a chance que eu tive de saber que não se deve fazer isso”, avalia o professor.
O que faz a PBH?
A Prefeitura de Belo Horizonte afirma que realiza uma série de trabalhos para ajudar na despoluição da Pampulha, como a limpeza do espelho d’água, o desassoreamento e o tratamento da lagoa. “Há a expectativa de que, com o avançar das ações em curso e a implementação das ações previstas, as intervenções na lagoa sejam cada vez menos intensivas, mas ainda necessárias. Entre as ações previstas e discutidas no âmbito do Comitê Gestor da Pampulha, se incluem medidas de gestão de resíduos sólidos, entre elas a crescente expansão da coleta, a eliminação de bota-fora clandestinos, a intensificação de ações de fiscalização e programas de educação ambiental.”